Futebol: A benéfica e indispensável alteração em artigo da Lei Pelé pela Lei da SAF.

*Por José Francisco C. Manssur

Nos debates que antecederam à entrada em vigor da Lei 14.193/2021 (“Lei da SAF”) e mesmo após sua edição, discutiu-se a questão da efetiva possibilidade de constituição de clubes-empresa no Brasil, mesmo com a legislação vigente anteriormente.

Não é totalmente falso o argumento de que nossos clubes-associação já poderiam se constituir em clubes-empresa mesmo antes da Lei da SAF. Porém, tal constatação não observa e contextualiza a questão como um todo. É, portanto, uma meia verdade.

O ordenamento vigente antes da entrada em vigor da Lei da SAF trazia amarras e obstáculo de dificílima superação a constituição do clube-empresa pelos clubes de futebol do Brasil. Clubes como Botafogo de Ribeirão Preto, Red Bull Bragantino e os outros, pouquíssimos que fizeram tal movimento, são, na verdade, exceções que confirmam a regra. A Lei da SAF, visando atender a vontade do legislador enquanto representante da sociedade civil, procurou remover boa parte de tais entraves, como no caso dos aspectos tributários da transmutação.

Dentre tais obstáculos, fundamental destacar a disposição vigente do artigo 27, parágrafo 2º da Lei 9.615/98 (“Lei Pelé”) como estava redigido antes da salutar alteração que lhe foi inserida pelo artigo 34 da Lei da SAF.

Para melhor entendimento da questão, deve-se fazer breve digressão histórica.

O texto original da Lei Pelé, de março de 1998, “caiu como uma bomba” na forma de organização do futebol brasileiro de então. A Lei Pelé extinguiu o “passe”, mudando completamente o parâmetro de relacionamento entre atletas e clubes, entre tantas outras alterações profundas no modelo vigente àquela época.

Uma das mudanças de maior relevância, aquela contida no artigo 27 da Lei Pelé original, causou enorme impacto ao estabelecer a obrigatoriedade de os clubes de futebol participantes de competições profissionais de adotarem uma das formas empresariais estabelecidas no Código Civil, abandonando o modelo associativo, conferindo, para tanto, prazo de dois anos contados da entrada em vigor da norma.

O status quo do futebol brasileiro resistiu como pôde diante das mudanças propostas pela Lei Pelé. No caso da obrigatoriedade de criação do clube-empresa, o enfrentamento à norma posta se deu sob o razoável argumento da inconstitucionalidade em face da disposição contida no artigo 217, I, da Constituição Federal, que confere autonomia de organização e funcionamento às entendidas esportivas.

No ano 2000, pouco mais de dois anos após a entrada em vigor da Lei Pelé, diversos dos seus dispositivos originais foram modificados pela Lei 9.981/2000.

No caso específico do artigo 27, a Lei 9.981/2000 revogou a obrigatoriedade de constituição do clube-empresa, mitigando-a em faculdade. Todavia, a mesma norma introduziu o parágrafo 2º do artigo, que trouxe uma amarra de difícil solução para os clubes que optassem em se constituir como empresas, ao menos para aqueles mais tradicionais, que contam com milhares de associados em seus quadros associativos. O referido parágrafo 2º ao artigo 27 previa que: “a entidade a que se refere este artigo não poderá utilizar seus bens patrimoniais, desportivos ou sociais para integralizar sua parcela de capital ou oferecê-los como garantia, salvo com a concordância da maioria absoluta da assembleia geral dos associados ou sócios e na conformidade do respectivo estatuto ou contrato social.” (n.g.)

A prática mostra que em alguns dos grandes clubes do futebol brasileiro, a reunião da maioria absoluta dos associados para a tomada de qualquer deliberação em assembleia geral é tarefa praticamente impossível.

Para ilustrar tal quadro, no recém-lançado livro “Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol – Lei 14.193/2021” , ao discorrer sobre o artigo 34 da Lei da SAF, trouxemos dados sobre o comparecimento de associados em Assembleias Gerais de eleição de dois dos clubes de maior torcida do Brasil, o Clube de Regatas do Flamengo e o Sport Club Corinthians Paulista.

Na última eleição para Presidente do Flamengo, havia mais de 7 mil associados aptos a votar. Porém, compareceram e votaram, efetivamente, na Assembleia Geral de Eleição do Presidente, apenas 3048 eleitores: menos da metade, portanto.

Já no Corinthians, em sua última eleição direta para Presidente, 10.550 associados compunham o colégio eleitoral, mas apenas 2.873 participaram da eleição. Ou seja, uma proporção ainda menor.

A par da patente crise de legitimidade, constatada a partir do fato de que clubes com 30 ou 40 milhões de torcedores, têm suas deliberações fundamentais, inclusive eleições de dirigentes, tomada por alguns milhares de associados, o fato objetivo é que obrigatório constatar que o associado que, mesmo tendo o direito, não tem interesse em participar da eleição do presidente do clube, dificilmente iria se mobilizar em número significativamente maior para deliberar em assembleia geral convocada para o fim de decidir sobre o árido e, muitas vezes complexo, tema relacionado à eventual destinação de ativos da associação para integralizar capital de companhia voltada à gestão do futebol profissional.

Eleições e Assembleias Gerais em outras entidades tradicionais, com milhares de associados, como Clube de Regatas Vasco da Gama, São Paulo Futebol Clube, entre outros, demonstraram os mesmos percentuais de comparecimento de associados. Confirmam, pois, tal constatação.

A exigência do quórum de maioria absoluta de todo o corpo associativo servia para sujeitar o interesse daqueles associados favoráveis à constituição da estrutura empresarial ao desinteresse refletido na ausência daqueles para os quais o assunto é irrelevante, inclusive daqueles que, como associados do clube, não são necessariamente torcedores do time de futebol da associação. Além de facilitar eventuais manobras de obstrução, no interesse daqueles que pretendem – e sempre haverá – resistir a toda mudança que implique renúncia de algum poder.

Por isso, a mudança no texto do artigo 27, parágrafo 2º, da Lei Pelé, promovida pela Lei da SAF tem importância fundamental para possibilitar a efetividade prática da norma. O dispositivo passou a exigir voto afirmativo “de mais da metade dos associados presentes à assembleia geral, especialmente convocada para deliberar o tema.”

Sem jamais deixar de levar em consideração a relevância fundamental da consulta aos associados do clube acerca de eventual utilização dos bens da associação para integralização de capital de companhia que venha a gerir o futebol profissional, a correção da norma anterior, com a adoção de um quórum factível para aprovação acaba por ter importância fundamental, vai ao encontro da intenção do legislador de, por meio da Lei da SAF, criar um sistema através do qual o futebol brasileiro possa efetivamente evoluir em todos os aspectos.

José Francisco Cimino Manssur é advogado, professor de Direito Desportivo do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, professor de Direito Desportivo no Curso de Gestão para Profissionais do Esporte da FGV/SP, Universidade São Marcos e Marketing Champion da ESPM, sócio do Ambiel, Manssur, Belfiore, Gomes e Hanna Advogados e coautor dos livros “Futebol, Mercado e Estado” e “Sociedade Anônima do Futebol”.

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