Procurando “Ontonho”

Por Marcílio Tavares Costa

Alguém se chamar Catulo já é uma coisa fora do comum e acredito que deve ter sido um grande incômodo ter que carregar pelo resto da vida um nome tão exótico. Um nome diferente era motivo suficiente para aguçar minha curiosidade de menino ao encontrar o livro de Catulo da Paixão Cearense, uma das obras da pequena biblioteca que meu pai mantinha em casa, possivelmente a única existente na árida vida cultural da rústica Jaguara dos anos 70 onde Seu Nelito praticamente não tinha com quem dividir o seu hobby preferido que era a leitura. Quando a Globo começou a colocar novelas de época, como A Moreninha (baseada na obra de Joaquim Manuel de Macedo) e Escrava Isaura (Bernardo Guimarães), ele que já era um noveleiro ganhou um motivo especial para falar dos livros que ele consumia com voracidade de cupim devorando papel e não raro ficava bravo porque a novela não retratava exatamente o que ele tinha lido, mesmo sabendo que era uma adaptação e que não poderia ser ipsis litteris. Voltando a Catulo, se o nome esquisito do escritor me levou a folhear o livro que encontrei, a sua leitura me fez entender o gosto de meu pai por aquele autor maranhense que era um exímio contador de “causos”, dono de uma narrativa deliciosa que eu adorava ler e reler. Mais tarde descobri que aquele homem de nome extravagante – digamos assim – era também um grande poeta e um grande compositor, autor de uma das músicas brasileiras mais conhecidas, “Luar do Sertão”, que teve em Luiz Gonzaga um de seus principais intérpretes.Não era só a biblioteca que compunha o ambiente que misturava casa, loja de tecidos e cartório. Além dos livros, tinha também a coleção de discos de vinil que meu pai gostava de ouvir, com destaque para cantores como Nelson Gonçalves – “boemia aqui me tens de regresso” -, Elizeth Cardoso – “minha vida era um palco iluminado” – e Dalva de Oliveira, estrela do rádio nos anos 30, 40 e 50 considerada por muitos como a melhor cantora brasileira. Muito jovem, ouvi várias vezes a execução de “Bandeira Branca” nas micaretas do Clube de Campo Cajueiro, onde os foliões rodavam sem parar na arena central do CCC ao som do maior sucesso de Dalva: “bandeira branca, amor, não posso mais…” Nesta playlist das antigas, quem também tinha espaço garantido na vitrola de Seu Nelito era Silvio Caldas com sua “Chão de Estrelas” – “minha vida era um palco iluminado, eu vivia vestido de doirado…”A vida da gente girava mesmo em torno do principal ofício de meu pai, que era tabelião de Jaguara. Naquela época o cartório era uma concessão – como voltou a ser hoje -, cuja posse poderia ser vendida e mudar de mãos. A compra dos cartórios de registro civil e de imóveis do lugar foi o que levou meus pais ao distrito e os fez sair de Tanquinho e mudar de vida completamente. Mesmo tendo sido comprado dentro da legalidade, meu pai perdeu um dos cartórios por conta de perseguição política no pós golpe militar de 64 e mais uma vez Seu Nelito mostrou que sua dignidade não estava à venda e não capitulou, apesar das imensas dificuldades que enfrentamos por conta disso. Este é um legado que nos orgulhamos e ajudou a formar o caráter que levamos pela vida toda.Algumas vezes era preciso fazer o registro das escrituras fora do cartório e meu pai ia ao encontro de vendedores e compradores em suas propriedades. Naquele dia acompanhei meu pai até a fazenda Diamante, nos limites de Jaguara e o município de Anguera. Fazenda bonita, muito bem cuidada e certamente vendida por um bom preço que não faço a menor ideia de quanto foi. O lugar me encantou pela estrutura dos currais e os belos animais da propriedade, mas o que me deixou mais feliz mesmo naquele dia foi a surpresa na hora de voltar pra casa. Terminada a lavração da escritura e feita a sua leitura, o novo dono assinou o documento e na hora de pagar a meu pai pelo serviço realizado me presentou com uma bela gorjeta, algo como 100 reais nos valores atuais, uma fortuna para um menino que voltou pra casa aos pulos de tanta alegria. Outra alegria foi quando levei um livro para alguém assinar numa fazendo porque meu pai não poderia se deslocar até o lugar. Eu fui convocado a levar o livro montado a cavalo junto com alguém que não me recordo quem. Uma aventura que só os heróis seriam capazes de fazer em meus sonhos juvenis. Inesquecível.Os livros do cartório eram enormes e muito pesados. O incrível era que meu pai fazia a escritura neles com a mesma letra do começo ao fim, uma caligrafia praticamente desenhada palavra por palavra, tudo feito com caneta tinteiro banhada a ouro, que exigia muito cuidado para não borrar e aí entrava em cena o mata-borrão, uma peça de madeira que tinha um papel poroso na parte de baixo que absorvia o excesso de tinta e impedia que o documento ficasse manchado.Além de registrar a compra e venda de imóveis, geralmente fazendas negociadas entre os pecuaristas, o cartório que ficou com meu pai também fazia o reconhecimento de firmas, uma burocracia que resiste até os dias atuais na qual o cartório precisa confirmar que a assinatura em algum documento é verdadeira. O reconhecimento de firma nada mais é do que comparar a assinatura no documento e o registro feito num livro que ficava no cartório. Se a pessoa não tinha seu nome naquele livro, ele precisava registrar a “firma” com sua assinatura. Meu pai tinha um caso engraçado que ele contava pra gente sempre dando muita risada. Seu Nelito dizia que certa vez uma pessoa chegou ao cartório para reconhecer a firma e ele perguntou qual a primeira letra do nome para poder pesquisar no tal livro e o homem respondeu que começava com a letra “O”.O tabelião perguntou se era Osvaldo, Oscar, Odorico, Olavo, Olegário e tantos outros que estavam registrados no tal livro, mas nada de encontrar o nome. Cansado de procurar, ele perguntou:- Afinal, qual é o seu nome? – É Ontonho, Seu Nelito – teria respondido o rapaz querendo se referir ao nome Antônio.

Marcílio Tavares Costa – Jornalista

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