Chegadas e partidas

O embarque era sempre no início da tarde de domingo, por volta das duas horas, no caminhão de Zelito Moreira, um pau de arara mais robusto que levava de volta para Feira de Santana um grupo que tinha ido a Jaguara vender produtos na minúscula feira do lugar e retornava com o que sobrou ou gente como eu que precisava chegar na cidade para cuidar da vida. Com menos de 11 anos, estava indo para a cidade para começar os estudos no Colégio Municipal Joselito Amorim, onde tinha sido aprovado no exame de admissão para cursar o ginásio. Repeti aquela rotina pelos próximos quatro anos. Saía no domingo e retornava para casa na sexta-feira seguinte subindo e descendo dos paus de arara com uma mala enorme que geralmente tinha não só as roupas sujas da semana, mas meus livros de estudo para fazer os exercícios de casa e recomeçar tudo na segunda-feira seguinte. Chegava na cidade já querendo voltar pra casa e desenvolvi uma técnica mental que acreditava ajudar a ter a sensação que o tempo passava mais rápido. Numa segunda-feira, por exemplo, eu sempre dizia pra mim mesmo que amanhã já é terça-feira, tentando antecipar meu retorno. Toda sexta-feira minha mãe preparava um bolo para me esperar de volta e eu o devorava quase que por inteiro antes da noite chegar, para a alegria de Dona Bernadete e Seu Nelito, que não escondiam a satisfação de ter de volta o seu filho caçula depois de mais uma semana sozinhos em casa. Aquela altura da vida, meus irmãos mais velhos já não moravam com meus pais e a minha chegada veio preencher um vazio na vida deles, ambos com mais de 40 anos e sozinhos. Ainda mais jovem, acho que com uns quatro anos de idade, vivi minha primeira experiência de ver a partida de alguém muito próximo. Meu irmão Luiz Carlos foi morar na Bélgica para concluir os estudos iniciados no seminário católico em Salvador e tenho na memória até hoje a nossa despedida no aeroporto da capital, onde a família e amigos se reuniram para acompanhar o seu embarque ao som melancólico da música de Emilinha Borba: “quem parte leva saudade de alguém que fica chorando de dor…” Era muito pequeno, mas aquilo me marcou. Contava dia após dia a espera do seu retorno, o que só aconteceu quase 20 anos depois, quando eu já era adulto, mas guardava ainda a despedida vivida na infância. Os afetos são sempre o fio condutor das idas e vindas dessa vida toda. O que o coração sente explode quando nos aproximamos ou nos afastamos de alguém querido, seja um amor de pais e filhos, de irmãos, de amigos e, alguma vezes, o carinho por alguém que nos conquista pela simpatia ou afinidades. Minha mãe era uma mulher sensível e generosa, fácil de estabelecer relações. Quando era menino, lembro que um dia apareceu uma andarilha em Jaguara e foi pedir ajuda lá em casa. Ela não só ganhou o almoço do dia como a partir daquele momento ganhou também a proteção de Dona Bernadete e também conquistou o seu carinho numa relação improvável dadas as condições de desconhecida daquela mulher que vagava pelo mundo afora em busca ninguém sabe de quê ou porquê. Um dia a nossa protegida decidiu ir embora e avisou a minha mãe que estava seguindo pela estrada da vida, apesar da acolhida que tinha recebido até aquele momento. Em pouco tempo, minha mãe já tinha construído laços inexplicáveis e aquela partida lhe doeu muito e lhe custou muitas lágrimas na despedida de uma pessoa que conheceu não fazia muito tempo e que nunca mais encontrou na vida. Como precisei me separar de meus pais ainda menino, sempre disse para mim mesmo que não permitiria que meus filhos vivessem experiência igual de morar na casa dos outros, mesmo entendendo que aquela foi a melhor opção para me garantir os estudos. Com a proteção de Deus, quis a vida que eu conseguisse manter minha promessa e somente visse um dos filhos deixando a casa quando era adulto e já estava numa faculdade. Mas a primeira separação é sempre um marco na vida, principalmente numa relação tão próxima e cheia de proteção e afetos. Com pouco mais de 20 anos, Allan foi para Salvador, enquanto André permaneceu com a gente. Depois foi para o Rio de Janeiro e por último São Paulo, onde está atualmente. O seu retorno pra passar o recesso de final de ano e os cuidados de Eliana para recebê-lo de volta me fez lembrar do bolo que dona Bernadete preparava para mim toda semana. Vamos comer bolo que a vida é feita de chegadas e partidas.
*Jornalista Marcílio Tavares Costa.
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