Viva Zezé Bosta Seca

Se na cidade a gente encontra animais soltos no meio da rua com certa facilidade, num distrito isso é rotina. Lá em Jaguara na minha época tinha porco, cavalo, jegue, galinha e cachorro de montão perambulando a qualquer hora do dia ou da noite. O que não faltava era menino e cachorro, mas teve uma época que apareceu por lá um filhote de carneiro que virou a brincadeira preferida de meninos e adultos. E a primeira coisa que o bicho aprendeu foi dar marrada. Era alguém chegar perto, o borreguinho ia pra cima e atacava com força. Um dia dei de cara com o bicho e achei de provocá-lo, afinal era um animalzinho tão bonitinho que parecia tão inocente e achava que não seria atacado. Estava errado, é claro. Em menos de um minuto atravessei num fôlego só todo o grande largo de Jaguara enquanto o carneirinho enfiou o pé atrás de mim para tentar me alcançar e acertar uma cabeçada. O susto foi grande, mas escapei esbaforido. Não foi uma façanha tão difícil assim. Afinal, atravessar o largo não demorou muito. Jaguara é um aglomerado de casas em volta desse largo com poucas ruas. No meio do descampado na época tinha a igreja de Nossa Senhora do Carmo, o pequeno mercado municipal, uma torre que iluminava parte do lugar, mais os dois cruzeiros que permanecem até hoje quase em frente a minha casa e junto da escadaria da igreja. Sem contar uma área perto do mercado que algumas vezes servia como campo de futebol, mesmo sem muitas condições para abrigar uma partida. Se fosse fazer um mapa para algum turista que estivesse perdido por aquelas bandas, seria uma tarefa praticamente inócua. Afinal, o lugar se resumia a esse grande largo enladeirado com muita pedra e quatro ruas pequenas. Guardando todas as proporções e colocando a imaginação pra funcionar, Jaguara era como Salvador, que tem cidade alta e cidade baixa. Na parte mais alta temos a rua de cima e do lado oposto a rua de baixo, evidentemente. Nesse meu sonho do absurdo, bem que caberia um teleférico ligando a parte alta até o rio Jacuípe e aí mudaria toda a história do distrito mais distante de Feira de Santana e um dos mais pobres. Voltemos à realidade. Completava ainda o desenho geográfico a rua do Pulo do Bode, cujo nome não sei a origem (oficialmente rua Coronel Servílio Carneiro), e outra rua que não lembro o nome, aliás, não sei nem mesmo se tinha nome. Jaguara não tinha nenhuma rua pavimentada e contava apenas com uma calçada estreita feita de paralelepípedo para escoar água da chuva num trecho bem pequeno. Passava na porta de minha casa e quando chovia eu corria logo para fazer barcos de papel e aproveitar a enxurrada para navegar a minha frota naval imaginária. Nessa terra que me remete a Macondo, a vila miserável de Cem Anos de Solidão do romance de Gabriel García Márquez, fora a igreja e o mercado municipal, outra referência era a única escola do lugar, o Grupo Escolar Maria Emília Pedra Braga, onde fiz o curso primário, um prédio que tinha três salas de aula, um pátio, uma pequena cantina e no fundo o posto de saúde, que tinha médico e dentista uma vez por semana. O distrito tinha uma delegacia, mas era de total inutilidade. O velho casarão passava o tempo todo fechado, até porque não tinha delegado nem policial e não me recordo de ter visto alguém ser preso. Assim como Macondo, Jaguara cresceu às margens de um rio. O Jacuípe – que se encontra com o rio do Peixe um pouco mais abaixo – é um rio que se esgueira em meio a um amontoado de pedras polidas pelos bilhões de litros de água que já passaram por ali, mas que na maior parte do ano tem um curso bem fraco, dependendo das trovoadas de verão ou das chuvas lá pras bandas de Morro do Chapéu, município onde o rio nasce na Chapada Diamantina. É neste cenário que encontramos e convivemos com muitas figuras, como Dona Coló, que tinha uma bodega de folha podre na esquina em frente a nossa casa. Ela era uma senhorinha baixinha franzina que não só vendia cachaça como também gostava de tomar uma boa caninha, tipo milome, erva-doce e outras infusões como catinga de porco. Uma verdadeira farmácia de ervas naturais cujo clientes batiam ponto todos os dias. Era um dos lugares preferidos pela turma que gostava da branquinha e uma noite um de seus clientes foi em busca de mais diversão, só que achou de amarrar o cavalo na árvore lá de casa e meu pai esbravejou. Como a visita demorava mais do que o esperado, dona Coló pediu um pouquinho de paciência: – Seu Nelito, ele sai já, ele sai já – repetia várias vezes enquanto o cliente terminava o serviço. Eu já trabalhava na TV quando fui convidado para participar de uma noite em homenagem ao vaqueiro no então Museu Regional de Feira de Santana. Uma noite agradável, com muita gente para prestar um tributo a um dos personagens que ajudou a construir nossa história. O próprio museu já tinha uma sala onde o vaqueiro tinha espaço, mas naquela noite o ápice das homenagens seria a presença de um vaqueiro ao vivo. Chegado o momento, um vaqueiro todo paramentado com roupas de couro e um ferrão numa das mãos entra no museu aboiando, entoando o canto sem palavras que ajuda a tocar o gado na lida diária de tanger os animais no sertão. Todos que estavam na sala formaram instintivamente uma grande roda para acolher o velho vaqueiro e por coincidência ele se postou ao meu lado, duro, sem nem desviar o olhar para o lado. Eu reconheci logo a figura e enquanto rolava a homenagem puxei conversa:- Você é de Jaguara? – perguntei e ele respondeu sem desviar o olhar pro lado que era sim morador do distrito. Fiz mais algumas perguntas e notei que o homem já estava ficando incomodado, certamente querendo saber quem era aquele que sabia tanto sobre ele. Segurando o riso, fiz a pergunta final:- Teu nome é Zezé Bosta Seca?O homem fechou ainda mais a cara e respondeu que era ele mesmo Zezé Bosta Seca. Propositalmente, não fiz mais nenhuma pergunta pra ele e deixei que ficasse remoendo por dentro tentando descobrir o que estava acontecendo. No final, perguntei:- Sabe quem sou eu?- Não senhor – resmungou, mas quando me apresentei ele abriu um sorriso e perguntou de pronto:- Como vai Dona Bernadete? – quis saber de minha mãe, comprovando mais uma vez a grande popularidade dela em Jaguara por todo carinho que sempre dispensou aos moradores do lugar. José Ribeiro dos Santos, hoje perto dos 80 anos, é uma das figuras mais conhecidas de Jaguara que criou e ainda organiza todo ano a Festa do Vaqueiro de lá. Hoje já não se importa mais, mas quando eu era menino, se alguém chamasse ele pelo apelido era briga pra não acabar mais. Viva Zezé Bosta Seca!!!!!

Por Marcílio Costa – Jornalista.

Marcílio Tavares Costa – Jornalista

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